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O amanhã

Regina Sanchez

Atualizado: 21 de out. de 2024

Parei no farol. Pelo retrovisor do carro vejo meus filhos, gêmeos de sete anos, olhando fixamente um morador de rua tendo uma alucinação, discutindo com o ar.

_ Mãe, por que aquele homem está falando sozinho?

_ Porque ele é meio doido.

_ Por que ele é meio doido?

Eu já havia entendido que essa era a primeira pergunta, mas...

_ Hum... porque isso às vezes acontece. Uma pessoa deixa de ser entendida, começa a ver e escutar o que os outros não escutam...

_ Mas assim, de repente?

_ Às vezes sim, meu filho.

_ E por que ele mora na rua?

Pode ser que tenha saído de casa quando era criança, porque seus pais eram violentos ou por beber muito ou usar drogas ou não conseguir trabalho e pagar aluguel.

A partir da vulnerabilidade daquele morador de rua, portador de algum distúrbio mental, esbarravam na questão da vulnerabilidade humana. Obviamente, a falta de políticas públicas no nosso país é uma desgraça ainda maior para as populações mais vulneráveis. Mas aquilo que parecia tocá-los era o fato da vida humana poder desandar. Eu podia vê-los imaginado... Quem será que ele era antes de perder-se? O admirado José sapateiro, amigo do Jurandir, pai da Joana, marido da Dirce, filho da Maria das Dores? Como perdeu-se? Hipnotizados, meus filhos encaravam o homem e davam de cara com a vulnerabilidade do morador de rua, dos loucos, dos homens, da minha, da deles.

Tentei confortá-los com um certo senso de ordem, a lógica do um mais um é igual a dois. Buscava tranquilizá-los com uma visão generalista e determinista, omitindo o caótico da vida humana, o fato de nosso mundo poder desmoronar e de nossas vidas, por muitos motivos ou por motivo nenhum, poderem perder o sentido. Afinal, sete anos...

Eles não se contentaram. Um deles complicou:

_ Mas e aquele homem do filme, que a família achou? Ele foi morar na rua, mas a família dele era boa!

Eles haviam assistido a um vídeo sobre um poeta e morador de rua, localizado e resgatado por sua família, que mostrava-se muito cuidadosa. Por isso, usaram a história para questionar minhas palavras.

Eita farol demorado!

As explicações de causas familiares falharam, mas as biológicas seriam imbatíveis, pensei: "Ele virou louco e mendigo, porque ele tem um defeito na cabeça, mas logo os médicos descobrirão a cura”. Resolvido, defeito na cabeça, loucura ou vício, rua! Semelhante equação superficial da vida satisfaz tantos adultos: falha bioquímica - depressão, ansiedade, compulsão, etc - remedinhos tarja preta. Por que aqueles meninos de sete anos (sete anos?!) não se satisfariam? Fiquei indecisa. Deveria fingir que não os entendia? Eles estavam tateando a questão da vulnerabilidade humana e eu iria dar-lhes essa resposta? Eles falavam da pessoa que se perde dos seus irmãos e pais, mesmo eles sendo bons com ela; de um homem poder virar morador de rua; do fato das pessoas poderem perder o rumo de suas vidas de diferentes maneiras; do podermos nos desequilibrar, enquanto equilibristas que somos; da incerteza inerente aos nossos futuros, que solicita nossa dedicação para transformarmos nossos sonhos em realidade, sem termos garantias; do inesperado; do podermos nos perder e devermos nos reencontrar. Eles estavam referindo-se ao andarilho que somos todos nós! Como eu falaria disso com meus meninos de sete anos?! Mas seria traí-los fingir que não os entendia. Olhei bem para eles, não estavam assustados. Já eu tive medo de eles descobrirem que explicações generalistas e reducionistas de causa e efeito (x + y = z) não dão conta da vida humana e, portanto, ela não é assim tão controlável e segura. Eles? Curiosos, sérios e atentos pareciam prontos para assimilar a expressão "só a morte é certa". Não percebi neles um sentimento bom ou ruim, mas sim uma descoberta crua de uma verdade sobre a natureza humana dos mendigos, dos loucos, da minha, das deles. Senti vergonha ao pensar em roubar-lhes a descoberta incrível, que começavam a fazer sobre ser gente, ser uma história única e vulnerável para perdas e ganhos e, por isso mesmo, destinada ao cuidado. Finalmente, respondi-lhe:

_ É verdade, filho. Muitas vezes, não há uma regra que explique o porquê das coisas acontecerem.

O farol abriu. Eu já não tinha pressa, a verdade estava posta. Eles viraram a cabeça na direção do homem, assim que o carro andou. Continuavam a encará-lo, sem medo e com respeito, pareciam fascinados ao reconhecer as diferenças e, principalmente, as semelhanças entre eles e o louco, ou melhor, entre eles e aquela pessoa.

Eles já não eram mais tão inocentes depois desse farol.

Após instantes da reflexão existencial, estavam maiores e com sete anos de-novo, morrendo de rir com uma brincadeira que fazem desde os seus cinco anos. Eu? Distraidamente cantarolava "Como será o amanhã? Responda quem puder..."




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